Colei da Folha de São Paulo. Um relato histórico do sofrimento dos palestinos
22.mai.2021 às 16h00
Daniel Avelar
SÃO PAULO
Para
o palestino Refaat Alareer, professor universitário em Gaza, os 11 dias seguidos de bombardeios israelenses foram
os piores da sua vida. “Quando estamos sob bombas, sentimos que é o pior dia
das nossas vidas, mas daí vem o dia seguinte e é ainda pior”, diz à Folha.
A
troca de mísseis entre Israel e o Hamas, grupo islâmico que governa Gaza,
foi interrompida na madrugada de sexta-feira (21),
após um cessar-fogo. Ao menos 243 pessoas morreram no enclave palestino, e
dezenas de milhares buscaram abrigo em escolas mantidas pela ONU.
Durante
os bombardeios, Alareer, 42, permaneceu em casa com sua mulher e as filhas de 6
e 8 anos. Ele diz que as crianças acordavam à noite “gritando e tremendo de
medo”.
Eu
vivo na cidade de Gaza, capital da Faixa de Gaza e principal alvo dos
bombardeios israelenses nas últimas semanas. A situação aqui é de devastação
total, você vê as imagens e parece que fomos atingidos por um terremoto. Nossas
escolas, ruas, delegacias e clínicas foram destruídas.
Nunca
vimos bombardeios como estes. O barulho é muito mais alto do que qualquer
tempestade que você já tenha ouvido. É ensurdecedor, amedrontador,
aterrorizante. Se um míssil cai sobre uma casa, danifica todas as casas ao
redor e faz tremer tudo a quilômetros de distância.
Não dá
para se sentir seguro em nenhum lugar em Gaza. Nem dormir conseguimos porque os
bombardeios não param nunca, e durante a madrugada fica uma loucura absoluta. Minhas
filhas acordam gritando e tremendo de medo.
Quando estamos sob bombas, sentimos que é o pior dia das nossas
vidas, mas daí vem o dia seguinte e é ainda pior.
Quando destruíram o
prédio que sediava Redações de veículos de comunicação, as
pessoas foram avisadas e tiveram 10, 15 minutos para sair dali. O governo
israelense tenta se mostrar piedoso, bondoso, mas que tipo de civilidade é essa
que destrói nossas vidas, nossas memórias, nosso sustento?
À noite naquele mesmo dia, Israel destruiu um
quarteirão inteiro com um único bombardeio, sem avisar ninguém
antes. As ambulâncias demoraram muito tempo até chegar ao local porque as ruas
que levam ao hospital haviam sido destruídas.
Nesse massacre horrível morreram 42 pessoas, sendo que 17 delas
eram da mesma família, a família Al-Kulak. Uma das sobreviventes é minha aluna
de inglês na universidade, ela está em estado crítico no hospital e ainda não
foi informada que seus dois irmãos, suas duas irmãs e sua mãe estão mortos. É
de partir o coração.
Também
morreram nesse ataque dois médicos que trabalhavam no maior hospital de Gaza,
um deles coordenava a resposta à pandemia. Assim como o Brasil, Gaza está
infestada com Covid, mas nossas clínicas de testagem e vacinação foram
bombardeadas.
Outro dia Israel destruiu um prédio em que ficava a maior
livraria de Gaza, a única que importava livros em inglês. Israel quer destruir
nossa educação, nossas artes, nossa cultura.
Nenhum país deveria estar usando mísseis contra civis. Sabemos
que Israel tem tecnologia, mas está atacando civis deliberadamente e escolhe
maximizar a destruição.
política
israelense sempre foi bastante extrema, mas agora está indo muito para a
direita. O premiê Binyamin Netanyahu é um criminoso de guerra que usa os
palestinos como moeda de troca para receber mais votos.
Agora, se você começa a contar nossa história pelos bombardeios,
você ignora o resto do que está acontecendo em Gaza. Três a cada quatro
moradores de Gaza são de famílias de refugiados expulsos de suas casas em 1948.
Estamos sob ocupação israelense desde 1967 e sob bloqueio desde 2006. Israel
controla tudo o que entra na Faixa de Gaza, e isso tem efeitos devastadores
sobre as nossas vidas.
Israel é um projeto colonial em estado constante de agressão
contra os nativos palestinos, não importa se estamos armados ou desarmados.
O racismo tem crescido contra os palestinos cidadãos de Israel,
a Cisjordânia está sendo tomada por colonos e lá não há armas ou foguetes. A
forma mais extrema dessa violência acontece em Gaza porque nos recusamos a nos
render. Não temos opção a não ser nos defender.
Nós não queremos pegar em armas, queremos que essa
ocupação acabe pacificamente. Quero poder comprar coisas e viajar com
facilidade, não quero ter que me preocupar com as minhas filhas correndo risco
de serem mortas por mísseis israelenses.
Agora que o mundo finalmente começa a ver os crimes
de Israel, vários líderes vêm dizer que a situação é complicada. Não há
equivalência moral entre um regime que recebe apoio dos EUA, da Alemanha e da
França e, do outro lado, um povo que é sitiado, brutalizado e oprimido.
Nós não confiamos na mídia convencional, pois muito
do que falamos acaba sendo editado ou censurado. Por isso, peço às pessoas que
busquem palestinos nas redes sociais e ouçam nossas histórias.
Nós vemos que há uma solidariedade incrível ao
redor do mundo. Mesmo no Brasil sabemos que há muito apoio, apesar de vocês
terem um líder maluco que nem o Trump.
O que nós pedimos é que as pessoas boicotem Israel
e pressionem seus políticos. Após muita pressão e sanções, esperamos que isto
termine, como aconteceu com o apartheid na África do Sul.
Como palestinos, acreditamos que nossa causa seja
parte de uma luta global contra o racismo. Hoje, nós nos organizamos contra a
ocupação israelense, amanhã contra o racismo e depois contra as políticas
anti-indígenas. Essa é a beleza de lutarmos juntos contra a opressão.
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